QUERER E PODER: A CONTRADIÇÃO DIALÉTICA ENTRE ESPÍRITO SUBJETIVO E ESPÍRITO OBJETIVO NA SOCIEDADE DE CLASSES

QUERER E PODER: A CONTRADIÇÃO DIALÉTICA ENTRE ESPÍRITO
SUBJETIVO E ESPÍRITO OBJETIVO NA SOCIEDADE DE CLASSES


Menezes, Jean Paulo Pereira de.
Professor de História no Dep. de Ciência Política e Economia da Unesp de Marília.
fafica_95@yahoo.com.br


A busca pela felicidade fora alvo da filosofia clássica, medieval e moderna. Hoje essa busca se mantem viva no espírito[1] subjetivo das pessoas como se fosse a chama ainda acesa que Prometeu roubara de Zeus[2].
Bilhares de pessoas buscam incessantemente a felicidade e para isso não poupam tentativas, das mais radicais até as mais conservadoras, seja saltando de paraquedas ou mesmo sentados diante de um laptop conectados as redes sociais.
Livros, filmes, jogos, roupas, amigos, namorados, trabalho, relacionamentos dos mais diversos são instrumentos na busca da felicidade no tempo presente. Ser feliz é a grande meta de bilhares de pessoas espalhadas pelo planeta, cada um ao seu modo e estilo, batalham por esta conquista.
Estudos da Universidade de Michigan apontam a felicidade[3] como um dos grandes novos campos de investigação nas ciências humanas. A felicidade parece realmente estar viva desde há tempos, ao menos a busca por ela é radicalmente viva em nosso presente imediato e não parece querer se apagar por um só instante. Seres sociais buscam se apropriarem de meios que os elevem a efetivação da felicidade. Vislumbram a realização de uma vida feliz, e, para isso, vivem por esta busca.
Talvez a situação mais emblemática seja a busca da felicidade no relacionamento afetivo. Neste caso, a pessoa idealiza, a partir das relações sociais historicamente construídas, uma ou algumas formas de se relacionar e acredita, a partir das suas convicções (das suas representações), que determinadas formas são as possíveis de lhe proporcionar a tão idealizada felicidade.
Neste sentido, felicidade[4] seria um estado espiritual socialmente construído de acordo com as relações sociais de produção e reprodução da vida que a pessoa está inserida. Ser feliz é conseguir efetivar o conceito que se eleva no espírito subjetivo. É ter clareza do significado do conceito[5] e a partir dele, postular a sua realização no espírito objetivo, ou seja, no mesmo mundo social em que a subjetividade é elevada até o conceito da coisa, neste caso, a felicidade como conceito que se realiza elevando ao espírito subjetivo e que retorna efetivando-se no mundo concreto, provocando o que Hegel chamou de uma segunda natureza.
Se esse movimento for concretizado em sua totalidade teríamos a efetividade da felicidade de forma absoluta e a realização seria a sua mais elevada manifestação da possibilidade de uma vida feliz a partir do devir histórico. Entretanto, a absoluta realização, via a concreta efetivação do conceito não parecer ser a constante neste mesmo devir de classes antagônicas.
Na sociedade de classes, sobretudo a capitalista dos últimos séculos, a busca da felicidade não desmente o parágrafo inicial destas nossas breves palavras. Todavia trata-se de observarmos mais de perto a processualidade histórica do conceito no espírito subjetivo e a sua efetivação a partir das relações com o espírito objetivo.
Tomemos como exemplo um trabalhador, assalariado, que para manter-se de pé tem que vender diariamente a sua força de trabalho. Este ser procura se realizar no mundo das mercadorias a todo custo que lhe é imposto. A partir do universo alienado que reproduz a sua vida, diante de limites vorazes, este mesmo procurará se apropriar de significados que darão algum tipo de sentido em sua existência.
E aqui reafirmamos a busca por felicidade como um destes sentidos na vida do trabalhador. Dedicar-se-a ao trabalho durante a maior parte da sua existência, procurando, a partir de um conceito, processado no espírito subjetivo, a elevação conceitual e retornar ao mundo objetivo de forma a ser absolutamente no mundo das coisas. Todavia, esta realização não pode ser absoluta, embora idealize isso, na sociedade de classes, pois a plena realização é impedida da efetividade no mundo concreto, restando-lhe apenas a pseudoconcreticidade[6]. E neste caso não teríamos uma processualidade de efetividade relacional entre espírito subjetivo e espírito objetivo, mas apenas um processo incompleto tomado como completo e a reprodução de uma existência enfeitiçada onde o espírito subjetivo tentaria se elevar ao conceito, mas que na verdade apenas o faria em uma sala de magia, onde as ilusões se apresentam como verdades e as verdades como elementos obscuros e desprezíveis. Não há nestes termos objetivação absoluta, não há uma segunda natureza como dizia Hegel. O que existe é um falseamento do conceito de felicidade e o contentar-se com o mágico e suas magias em um devir mistificado e embrutecedor do ser onde a representação é o início e o próprio fim.
Outra busca pode nos auxiliar diante de nossas problematizações expostas até aqui: a da liberdade.
A realidade subjetiva produz a construção ideal de liberdade que consegue se elevar, a partir do espírito subjetivo, até o conceito. Mas mais uma vez o problema se apresenta, pois a elevação até o conceito de liberdade não significa que o conceito consiga se efetivar diante do espírito objetivo do mundo.
Um ser pode desenvolver o conceito de liberdade em seu espírito e até mesmo refiná-lo no decorrer desta processualidade que é histórica. Pode conseguir atingir o conceito de forma clara para sí e ter parte da efetividade realizada para sí. Mas neste caso teríamos apenas parte do processo efetivado, a menos que aceitássemos a participação da magia mais uma vez em nossa história e tomássemos o processo por efetivado em absoluto.
Mas ao buscar a efetivação do conceito no espírito objetivo que se dá em uma sociedade de classes, o ser inevitavelmente se deparará diante da crise como um momento vital deste mesmo devir. Crise porque entende o conceito, mas não é capaz por sí só de efetivar o conceito no mundo concreto e não criando uma segunda natureza, mas uma quase síntese que não se realiza senão diante do momento da crise no presente.
Se o conceito de espírito subjetivo e objetivo ficar preso a tradição hegeliana, não atingiremos o fim da história, mas sim a busca da superação dos limites que se encontra no espírito objetivo e que impedem o espírito subjetivo da efetividade absoluta e aqui já estamos elevando o conceito de espíritos a outros patamares que só fora possível com as contribuições de Karl Marx sobre a História.
Nesta perspectiva, a realização do conceito no espírito objetivo se faz considerando que a própria processualidade em seu momento da crise é a antessala da efetivação do conceito de liberdade. Em outras palavras, a realização parcial da liberdade na sociedade de classes não estanca o espírito humano à um estado de coisas pré-estabelecidas (como a propriedade privada), mas ao contrário, o impulsiona à construção permanente da síntese deste devir. A permanente construção diante da crise de realização efetiva do conceito é ao mesmo tempo a sua afirmação necessária para a processualidade história que Marx ainda identificava em sua “pré-história” da humanidade[7], pois a regência da liberdade ainda não é algo efetivado no espírito objetivo.
Assim a parcial realização do conceito no espírito subjetivo é fundamental para o conceito de História que Marx apresenta no decorrer de sua trajetória, pois a identificação dos limites da liberdade na sociedade capitalista, impulsiona para a destruição destes mesmo.
Por isso a necessidade da revolução social que desatravancaria o conceito elevado pelo espírito subjetivo, possibilitando o seu retorno ao mundo para além da pseudoconcreticidade e ai sim realizando-se de modo efetivo a regência do homem que conceitua e objetiva na vida a liberdade distante das correntes da cartola do mágico. A revolução social compõe a busca da efetividade do conceito no mundo concreto e a busca de superação da idealidade presa á cartola, ou ainda, a elevação do conceito para o mundo prático.
Desta forma, tem-se a constante construção do espírito ou a sua estagnação histórica, desmascarando assim a máxima que diz “querer é poder”, por: querer nem sempre é poder na hora que se quer.
Marx em seu 18 Brumário faz referência a Hegel sobre os limites da realização no espírito objetivo diante do ser do espírito subjetivo. E considera que o fazer histórico é possível, porém, diante de limites e imposições também históricas que ao ser são colocadas para o fazer diante das contradições. Não se tratando ainda de uma natureza segunda, mas da historicização necessária rumo a outro estado de coisas que não se apresentará na História de modo natural ou linear, menos ainda sem crises e sem conflitos[8].








[1] Espírito aqui tem o sentido de consciência. Não apresentamos um estudo sobre o conceito de Geist em Hegel e a superação deste conceito em Marx. Entretanto partimos do pressuposto marxiano diante de Hegel. O fazemos assim por entendermos que ao se tratar de apenas algumas palavras não seria possível uma exegese neste espaço.
[2] Na narrativa mítica grega o fogo era algo reservado aos deuses. Prometeu, que era um titã, provavelmente após a Titanomaquia (guerra entre os deuses e os titãns), subordinado a Zeus, observa a fragilidade dos homens diante dos outros animais e resolve dar-lhes o fogo. E o fogo aqui não deve ser entendido apenas em seu estado físico-químico, mas como uma metáfora sobre o conhecimento, a capacidade de realização da autopoiesis, de criação.
[3] Para uma leitura introdutória sobre a literatura acerca deste objeto de estudos sugerimos o artigo produzido a partir de investigações realizadas no Brasil, publicados na Revista de Psiquiatria. FERRAZ, Renata Barboza; TAVARES, Hermano  and  ZILBERMAN, Monica L..Felicidade: uma revisão. Rev. psiquiatr. clín.[online]. 2007, vol.34, n.5, pp. 234-242. ISSN 0101-6083.  http://dx.doi.org/10.1590/S0101-60832007000500005. 
[4] Em “Carta sobre a felicidade”, a Meneceu, Epiruro de Samos apresenta: “Que ninguém hesite em se dedicar à filosofia enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo depois de velho, porque ninguém jamais é demasiado jovem ou demasiado velho para alcançar a saúde do espírito. Quem afirma que a hora de dedicar-se à filosofia ainda não chegou, ou que ela já passou, é como se dissesse que ainda não chegou ou que já passou a hora de ser feliz. Desse modo, a filosofia é útil tanto ao jovem quanto ao velho: para quem está envelhecendo sentir-se rejuvenescer através da grata recordação das coisas que ja sjáforam e para o jovem poder envelhecer sem sentir medo das coisas que estão por vir; é necessário, portanto, cuidar das coisas que trazem a felicidade, já que, estando esta presente, tudo temos, e, sem ela, tudo fazemos para alcança-la”. Tradução de Àlvaro Lorencini e Enzo Del Carratore, São Paulo: Editora Unesp, 2002 (pág. 21- 23).
[5] Conceito e representação não são as mesmas coisas. A representação toma a coisa por sí mesma, não avança no sentido e entender sua constituição, a processualidade histórica da coisa. A representação se apresenta como a manifestação da coisa de imediato e possui o caráter particularista de compreensão. O conceito procura, a partir da representação, apresentar a constituição da coisa para além do fenômeno, para além do mundo das ideias sobre a coisa. Conceituar significa procurar entender para além da representação particular e elevar o entendimento ao universal, no sentido de buscar captar o movimento de constituição da própria representação, uma vez que esse movimento não se apresenta pela própria.
[6] Pseudoconcreticidade, aqui, tem como referência a abordagem do universo fenomênico apresentada por Karel Kosik em “Dialética do Concreto” de 1963, livro publicado no Brasil pela Paz e Terra, tradução de Célia Neves  e Alderico Toríbio, 8 reimpressão, São Paulo: 2010.
[7] Em 1859 Marx publica pela sua primeira vez a sua Crítica da Economia Política, nela apresenta a seguinte passagem: “As relações burguesas de produção constituem a última forma antagônica do processo social de produção, antagônicas não em um sentido individual, mas de urn antagonismo nascente das condições sociais de vida dos indivíduos; contudo, as forças produtivas que se encontram em desenvolvimento no seio da sociedade burguesa criam ao mesmo tempo as condições materiais para a solução desse antagonismo. Daí que com essa formação social se encerra a pré-história da sociedade humana” (grifo nosso). Tradução de Edgard Malagodi, Editora Nova Cultural, São Paulo, reimpressão de 2005.
[8] Marx se refere desta forma na tradução de Nélio Scheneider: “Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram. A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem estar empenhados em transformar a si mesmos e as coisas, em criar algo nunca antes visto, exatamente nessas épocas de crise revolucionária, eles conjuram temerosamente a ajuda dos espíritos do passado, tomam emprestados os seus nomes, as suas palavras de ordem, o seu figurino, a fim de representar, com essa venerável roupagem tradicional e essa linguagem tomada de empréstimo, as novas cenas da história mundial. Assim, Lutero se disfarçou de apóstolo Paulo, a revolução de 1789-1814 se travestiu ora de República Romana ora de cesarismo romano e a revolução de 1848 não descobriu nada melhor para fazer do que parodiar, de um lado, o ano de 1789 e, de outro, a tradição revolucionária de 1793-95. Do mesmo modo, uma pessoa que acabou de aprender uma língua nova costuma retraduzi-la o tempo todo para a sua língua materna; ela, porém, só conseguirá apropriar-se do espírito da nova língua e só será capaz de expressar-se livremente com a ajuda dela quando passar a se mover em seu âmbito sem reminiscências do passado e quando, em seu uso, esquecer a sua língua nativa”.    MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte / Karl Marx ; [tradução e notas Nélio Schneider ; prólogo Herbert Marcuse]. - São Paulo : Boitempo, 2011. (Coleção Marx-Engels), (pag. 25-26).






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