A VULGARIZAÇÃO DO CONCEITO DE SUPERAÇÃO

Menezes, Jean Paulo Pereira de.


Neste artigo não propomos mais do que algumas palavras sobre uma importante categoria: a superação. Detidamente, sobre sua vulgarização. Um segundo texto poderá ser apresentado aos leitores, mas a manifestação mais fenomênica da vulgarização do conceito é o tecido aqui.
O significado da palavra superação, de acordo com o dicionário Houaiss é: “Ação ou efeito de superar; sobrepujamento. Ação de conseguir vencer e/ou triunfar”. Se nos ocuparmos de um rápido levantamento na network, encontraremos aproximadamente 2.640.000 citações com a palavra superação. Se nos lançarmos às livrarias, virtuais e físicas, nos depararemos com outras milhares de referências. Há uma pluralidade capaz de atender a todos os gostos, idiomas e fantasias quando o tema central é a superação. Mas superação do que? Do pesadelo, da beleza, da tristeza, da angústia, da política, do sexo, do celular, do carro, do esporte, da música, do trabalho? A resposta é: de tudo... tudo que você desejar. Oferecem a superação pluralista justamente para atender à demanda: “supere, vença e triunfe!”.
Evidentemente, acima, nos referimos a um significado utilitarista e fetichizado do conceito de superação e ainda do próprio conceito de conceito. Entendemos por significado utilitarista o campo daquilo que o filósofo Karel Kosik identificou como sendo o mundo da “pseudoconcreticidade”. A superação utilitária cumpre uma função social, mas não avança, não provoca superação alguma. Nos deteremos a ela.
A superação apregoada na pseudoconcreticidade apenas possibilita andar de bicicleta, não avança no sentido de entender os movimentos dos corpos; ela é capaz de contribuir para que o ser consiga operar softwares sofisticados, mas não permite entender o funcionamento mais interno destes mesmos programas. A superação vulgarizada corrobora uma vida utilitária e não queremos dizer com isso que se trata de uma vida fútil e mesquinha. Reafirmamos que essa práxis utilitária é importante, mas não se trata do fundamental.
Os exemplos acima são um tanto mecânicos, mas ilustram de forma mais imediata os limites da nossa problemática central. Quando nos deparamos com situações mais complexas, o quadro fica ainda mais cinza. Por exemplo, quando da relação capital – trabalho; da multiplicidade comportamental; da política; da economia e das relações sociais de reprodução da vida para além da aparência das coisas. Nestas situações a ideia (e não é nada além disso) de superação fica refém de um momento apenas da vida social. Os fundamentos não são revelados em sua superficialidade e a necessidade da real superação é solicitada para que se avance criando novas necessidades a serem continuamente superadas.
Queremos dizer com isso que, por exemplo, para que uma situação de conflito seja realmente superada é necessário ir além do conceito de superação vulgarizado pela sociedade de mercadorias. É preciso entender do que se trata esse conceito e neste caso querer entender já é um grande desafio quando temos um universo fetichizado à nossa disposição.
A superação vulgar prega (isso mesmo, prega) o conflito como se este fosse apenas fruto da criação da mente perturbada, localiza o indivíduo, o perturbado, mas não se ocupa de entender as origens fundamentais do conflito perturbador. Apresenta, normalmente, um receituário de regras, passos, mecanismos plásticos para a resolução e pseudosuperação do conflito, que é vendido aos seres apoiando-se em peças publicitárias, vide escritores como Paulo Coelho. Identificam a existência de um problema e o exploram no sentido de apresentarem respostas salvadoras, muitas vezes espiritualistas, ocultistas da vida realmente em constante conflito.
O conceito vulgarizado, apesar destas fragilidades, é aceito, consumido e se realiza em sua forma fetichizada. O que invoca a necessidade da real superação como uma característica importante na História e mesmo nas histórias grupais/individuais, pois todas se relacionam em menor ou maior instância diante do todo.
Desta maneira, inconscientemente, forjamos a não-superação das diversas problemáticas sociais e individuais. Provoca-se a manutenção do conflito e uma falsa sensação de superação que não passa, na melhor das hipóteses, de um elixir que jamais superará a crise.
A esta altura nosso leitor deve ter entendido que a superação não significa o fim de todas as coisas, mas uma situação histórica que deve ser encarada de forma social, de forma também histórica. Superar é buscar entender os fundamentos das coisas que fundamentam os conflitos. Superação real está em sintonia com a negação e afirmação dos fenômenos na pseudoconcreticidade. Trata-se de questionar os conflitos para que se busque conhecer as suas múltiplas relações com aquilo que não se vê imediatamente, requer considerar que aquilo que se apresenta não se encerra nele próprio.
Para exemplificar esta abstração imaginemos um casal em situação de conflito. Dois seres se relacionam, se gostam, dizem se amar (...), entretanto os enamorados vivem em conflitos que os colocam em situações de crise permanente... provocando angústia, tristeza e sofrimento. O que fazer? A maior parte das editoras certamente possui um livro para superar este tipo de crise e dar uma resposta. Dificilmente as emissoras de TV ficarão atrás, e as religiões terão até mesmo programas específicos de atendimento aos casais como este imaginário.
A situação de crise pode chegar a tal ponto onde os seres sequer conseguirão observar que a situação é um fenômeno social e não apenas privado de Romeu e Julieta. Se presos as formas fetichizadas de relações, poderão sofrer até a morte da mais linda paixão, pois não serão capazes de estabelecer problematizações vitais na busca de compreenderem os fundamentos do fenômeno que apenas lhes é revelado em sua forma mais simples, mais imediata. Brigam e ficam tristes... estando tristes, não se falam, não questionam a si mesmos o porquê do desentendimento... aí ficam mais tristes, pois a tristeza se manifesta fenomenicamente de modo imediato... e com essa imediaticidade acabam por se afastarem cada vez mais dos motivos que os fizeram estar juntos. Se afastam dos fundamentos da sua história mais particularizada de amor para se deterem cada vez mais na tristeza da briga... na angústia e na dor.
Pensar a superação de tudo isso sem considerar que a superação compreende o conflito, ou seja, que o conflito faz parte da possibilidade de superação de determinada situação... Ignorar que a crise é uma situação histórica e que as relações sociais não são harmônicas é buscar transitar com um conceito de superação apresentado em teledramas idiotizantes. O resultado mais possível é idiotizar a própria vida e renunciar a possibilidade de uma vida consciente dos conflitos e a necessidade de superá-los diante dos limites postos socialmente.
O quadro é ainda mais complexo se considerarmos que a superação de uma relação social improvavelmente se dá por uma via apenas individual; mesmo sozinho, o ser possui uma leitura de mundo que não surgiu em sua cabeça como um raio em dia de céu azul, a superação substancial da crise só é possível se pensada socialmente, ou seja, entre todas as partes que em suas relações sociais dão vida aos conflitos.

Diante disso nos parece bastante inócua a busca de uma superação que se passa apenas em uma cabeça iluminada, seja pela razão ou por vontade dos deuses. Superar, superação está em um complexo de complexos que é encarado melhor quando se reconhece que o conflito, a crise também são partes constitutivas das relações sociais de produção e reprodução da vida. Assim, não adianta possuir o maior psicólogo, o melhor deus ou a melhor das intenções conjugais. É necessário encarar as relações sociais e suas crises como momentos da sociabilidade humana, que podem ou não ser superadas. Para tudo isso o conceito utilitarista de superação não colabora em absolutamente nada, ao contrário, apenas provoca o retardamento daquilo que poderia vir a ser melhor e superior.

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